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Ricardo Dip: Registros sobre Registros #09

(Princípio da independência jurídica do registrador -Parte terceira)

59. Tal já o vimos nesta série de pequenos artigos, podem dividir-se as atividades do registrador público, segundo

(i) sua função de gerenciamento administrativo e financeiro,

(ii) outra de natureza técnica (ou poiética) e

(iii) a de qualificação jurídica, que é a mais típica e especializada do ofício registral.

A cada um desses grupos é possível corresponder, conforme o exijam a natureza da instituição registrária ou, no território que lhe é próprio, o direito positivo, um poder lato sensu tutelar (ou de tutória, conceito e realidade abrangentes da tutela administrativa stricto sensu). Poder este, o de tutória, que terá maior ou menor intensidade, quando sua gradação varie não só em virtude das escolhas políticas do nível de controle administrativo da descentralização, mas também diante das diversas funções registrais objeto desse controle, matéria que −como se verá− demanda indispensavelmente uma previsão legal (a que não se pode recusar, entretanto, uma possível agregação de costumes administrativos, desde que secundum vel præter legem).

60. Por mais −assim entendemos− que, em nosso País, haja uma parcela de mito com a referência, no Código republicano de 1988, a uma “delegação” dos registros, quando, tal o temos sustentado, não só o registro público teve origem na auctoritas historicamente solidada na sociedade política (o que lhe acarretou configurar-se antes como função da comunidade, e não, diversamente, como função da potestas política), mas também porque, de fato, em geral, os registros não foram, ordinariamente, entre nós, serviço público de prestação estatal.

Em contrapartida, não se pode, todavia, negar, entre nós, a efetividade do império positivado dessa delegação registrária (cf. caput do art. 236 da Constituição federal de 1988), e também é de admitir uma limitada transferência de algo de poder político aos registradores públicos: isto houve factualmente e ainda há −por evidente, quanto à fides publica.

Cabe aqui averbar, de caminho, que o termo “serviço público” não se identifica meramente com serviço estatal: há atividades públicas que podem (e até convêm) exercitar-se mediante prestação por particulares, ainda que sob algum fomento e controle do Estado.

61. Em sentido genérico, o termo delegação importa numa transferência, quer vertical (desconcentração), quer horizontal (descentralização), de poderes decisórios, embora com possível anexidade de meios executórios, mantendo-se nessas duas espécies o traço comum de alguma competência do delegante.

Podem ainda referir-se outros conceitos, agora específicos, dessa versada “delegação”: assim, (i) o que se demarca pela transferência transitória do exercício de atribuições que permanecem de competência do superior delegante (p.ex., vide Roberto Dromi e Paulo Otero); (ii) a “delegação de assinatura”; (iii) a transferência a entidades particulares da gestão de serviços de caráter social ou cultural (cf. Diogo Freitas do Amaral); e, o que mais aqui importa, (iv) a outorga de poderes públicos a entidades privadas (assim, v.g., Zanobini e Pedro Gonçalves).

62. Em que consiste essa outorga de poderes públicos relativos à função registrária?

Não se poderia pensar numa transferência de algo que não é próprio do Estado, ou seja, que não se abarca por sua potestas. Na medida em que o registro público é resultado de uma auctoritas −saber socialmente reconhecido (na dicção célebre de D’Ors)−, este atributo não advém ao registro por meio da soberania política, mas, isto sim, é derivado da soberania social (Vázquez de Mella). Resta, portanto, ao poder político a dação de um predicado ao registrador: é o predicado da fé pública, vale dizer, o atributo de que de um particular emerja autenticidade ou plenitude de prova que viabilize certeza secundum legem relativa a determinados documentos e a correspondentes stati iuridici.

Mais uma vez: o que pode delegar-se do poder político é o que lhe é próprio, não o que já era exercício de atributo comunal dos registradores.

63. O caso brasileiro, relativamente aos registros públicos, aponta no sentido de que a delegação prevista no caput do art. 236 do vigente Código político se molda a uma descentralização, realidade e conceito que consistem em assinar atribuições de caráter administrativo −de maneira permanente− a pessoas particulares, que atuam em nome e conta próprios, sob alguma sorte de atuação superior (neste sentido, p.ex., Dromi).

Bem se vê, a nota de permanência é o diferencial mais relevante entre, de um lado, a descentralização e, de outro, a delegação transitória de poderes.

64. O tema a considerar neste breve artigo é o da harmonia entre a independência jurídica do registrador e o poder de atuação reservado administrativamente, sindicando-se o que, a propósito, define a atual normativa brasileira de regência.

Neste passo, por primeiro, é preciso acercar de modo cauteloso a fértil doutrina administrativista estrangeira, em que termos verbais usados em comum referem noções nem sempre cônsonas, quais, por exemplo, as de “tutela administrativa” e de “superintendência”, conceitos que frequentemente, não podem transplantar-se, sem retificações, para aplicar-se à realidade das instituições brasileiras.

É de assinalar que, como quer chamemos este poder de tutória do delegante, ele só pode exercitar-se com espeque na legalidade, já porque assim o reclamam e impõem (i) a independência profissional do registrador, (ii) o fim de segurança jurídica perseguido com o registro e (iii) o mesmo princípio da legalidade a que se aclima a administração pública.

65. A potestade ordinária de atuação estatal sobre as atividades registrárias divide-se em (i) potestas iudicialis e (ii) potestas non iudicialis. Aquela, a iudicialis, consiste num poder de maior rigidez formal, conexionado a uma legalidade estrita e externa (é dizer, não se admite autorreferencial: os códigos de normas judiciárias para as atividades extrajudiciais não podem instituir hipóteses para a potestas iudicialis). A outra, a non iudicialis, abrange a generalidade dos atos governativos e, mediando prévia autorização legal, os atos normativos que, fruindo de um poder leges ferendi (o de criar normas), não se estende, porém, ao poder de estatuir penas (competência præcepti pœnarum).

Em nosso vigente direito constitucional posto, as atribuições da potestade de regência −potestas regiminis− dos registros públicos estão expressamente limitadas a uma remessa da “fiscalização” de seus atos, pelo Poder judiciário, à normativa subconstitucional (§ 1º do art. 236 da Constituição de 1988).

Desta remissão constitucional −e com o advento da Lei brasileira n. 8.935/1994 (de 18-11)− emergiu a ideia, conformada a sólido costume, de que a fiscalização das atividades registrais não se restringe à inspeção, equivale a dizer, ao mero poder de apreciar e decidir sobre a legalidade e o mérito −conveniência e oportunidade− da prática de atos.

Parece firmado na prática o entendimento de que essa fiscalização compreende as duas espécies da potestas iudicialis, a saber:

(i) a superintendência, aqui no sentido que lhe assinou Marcello Caetano, qual seja, o poder de revogar, modificar ou suspender, total ou parcialmente, os atos praticados nas atividades registrárias: trata-se de exercício de jurisdição administrativa, em que se admite, sempre na estrita forma da lei (vide arts. 198 et sqq. da Lei n. 6.015, de 31-12-1973, e as normas referentes aos processos de averbação, de retificações e de nulidades dos registros), uma competência ou poder de ordens (comando imperioso para uma situação concreta e singular).

(ii) o poder disciplinar.

66. No plano da potestas non iudicialis, tem-se entendido caber um poder de orientação (ou seja, a competência de diretivas, sob o modo de recomendações −normatividade soft), e, além disso, a potestas leges ferendi, que −como é imperioso− não pode afligir a independência jurídica do registrador e exige, de maneira expressa, uma previsão legal de apoio (lê-se no inc. XIV do art. 30 da Lei n. 8.935, de 1994, que pode o juízo competente estabelecer “normas técnicas”, a fim de que “os serviços sejam prestados com rapidez, qualidade satisfatória e de modo eficiente” −caput de seu art. 38).

67. Desta maneira, não se preveem no direito brasileiro atual:

(i) competência administrativa de comandos prévios para casos concretos e singulares (poder de ordem), com inibição do exercício originário do juízo de qualificação do registrador;

(ii) competência administrativa de instruções −o pouvoir d’instruction dos franceses−, de previsões imperativas para situações gerais e abstratas, o que não se confunde, porém, com a competência de diretivas, em que se ministram orientações sem imperatividade;

(iii) competência administrativa de definir ilícitos e cominar-lhes sanções (competentia præceptorum illicitorum et pœnarum).

68. As várias competências administrativas que, com amparo na lei vigente e secundum consuetudinem, devem exercitar-se, pelo Poder judiciário, no Brasil, para a exigível fiscalização das atividades registrais, não são, em seus estritos contornos, aflitivas da independência jurídica do registrador público.

Claro está que esse figurino legal de competências de caráter administrativo deva observar-se de modo regular para que não atrite com a independência do registrador, também ela prevista expressamente em lei, demais de ser um atributo da natureza das coisas −rerum naturæ.

A edição de comandos à margem dos processos em que legalmente sejam admitidos (porque neles está preservada a atribuição originária e independente do registrador), o não agora de todo raro exercício de competência administrativa de instruções (com os códigos de normas judiciais, as volumosas normas de serviço, as resoluções, os provimentos, as sentenças normativas etc.) e a instituição administrativa de tipos infracionais e sanções parecem, com efeito, colidir com a repartição constitucional de competência legiferante e a previsão legal de independência jurídica do registrador.

Mais estas colisões com a normativa pareceriam notar-se quando comandos e instruções emanam de órgãos do Judiciário que sequer detenham soberania administrativa quanto aos registros públicos.

(Continuará)